Na primeira parte das melhores histórias do Demolidor, falei um pouco do herói de forma geral e em seguida das passagens de Frank Miller pelo título – com destaque para os arcos Queda de Murdock e O Homem sem Medo. Nessa segunda parte, selecionei mais três importantes autores que marcaram presença junto ao personagem. Texto com SPOILERS!
Fase Kevin Smith
De todas as características únicas de Murdock, uma delas é constantemente relegada ao segundo plano, o fato do Demolidor ser católico. Entretanto, nessas oito edições – que compõem o arco chamado Diabo da Guarda – o escritor Kevin Smith usa esse tema como o ponto central da trama.
Matt já inicia a trama questionando a sua fé devido as tamanhas e constantes provações pelas quais ele havia passado recentemente. Já abalado, o herói sofre um complexo e arquitetado plano, que ataca a vida pessoal do herói, levando aos limites extremos de sua sanidade. Antigas figuras retornam com novos problemas – Karen Page volta e descobre ser portadora de HIV; amigos necessitam de ajuda – Foggy é acusado de assassinato; e questões extremamente delicadas são impostas abruptamente sobre seus ombros, sendo talvez esse o motivo gerador de todas as demais questões – surge um bebê que teoricamente pode ser a reencarnação do salvador ou um anti-cristo.
Diversos personagens da galeria do herói dão as caras e sérias consequências decorrem de suas interações, recheadas de diálogos marcantes e inesquecíveis. Tudo isso colocado ao leitor em uma velocidade impressionante, permanecendo um ritmo incessante até quase o final do arco. Durante todo o desenrolar, todos esses delicados e controversos temas são abordados e vemos o homem sem medo passar por sua segunda grande provação desde a queda. Esse arco completo foi relançado recentemente na coleção de encadernados da Salvat.
Fase Brian Michael Bendis
A fase da dupla, Michael Bendis e Alex Maleev, à frente do Demolidor durou impressionantes quatro anos. Bendis conhecido pela sua gigante participação em diversas HQs da editora, fez na série do homem sem medo seu melhor trabalho até hoje e também um dos melhores anos do herói. Já Alex Maleev combina realismo quase fotográfico com um estilo artístico único, usando de um sistema de sombras e cores que culminam em uma atmosfera diferenciada, captando a essência dos cenários e o peso das ações.
O principal mérito do escritor durante esses anos foi o elevado e constante nível das tramas. Com histórias fluidas e desenvolvimento sutil, os eventos dos arcos se integravam de modo harmônico, ao mesmo tempo em que um plot mais amplo é realizado. Bendis constrói em torno do Demolidor uma temática mais complexa e realista, o homem sem medo assume uma tonalidade mais cinzenta, quando comparado à proposta dos heróis clássicos, com um que de noir. Tomando ações assustadoras e por muitas vezes respondendo a altura a atrocidades cometidas por vilões – com direito a diálogos diretos e fortes – parafraseando o heroi: “Vocês precisam de um novo rei? Então eu o serei”.
O Matt Murdock de Bendis é um personagem profundo e humano, tomando por diversas vezes decisões questionáveis e posições contrárias ao comportamento comum de heróis eticamente corretos – tudo em decorrência das duras provações e constantes problemas impostas sobre ele. Durante esses anos, o escritor também conseguiu explorar praticamente toda a gama de personagens da historiografia do Demolidor, indo desde os conhecidos até alguns muito obscuros do universo Marvel. Além disso, ele também introduziu novas figuras e, ao longo da série, as tornou pontos de referência dentro da trajetória do herói, como Milla Donovan. Até o conhecido bairro da Cozinha do Inferno ganha importância e uma caracterização própria, refletindo quase uma área à parte do resto da cidade, lembrando bastante uma Nova York dos anos 80, com gangues e violência a cada esquina escura.
O principal e mais impactante tema abordado, quando a identidade secreta Murdock se torna pública, foi uma questão que gerou grande receio dos fãs, mas seu desenvolvimento foi executado de modo irretocável. Diversos ângulos distintos são explorados, mostrando desde as mais claras consequências – entre os vilões, imprensa, de civis e até amigos e dos demais heróis. Afastando assim qualquer desconfiança que esse seria apenas um momento dispensável e superficial na vida do herói e que poderia ser revertido através de uma pouco crível solução. Na trama esse evento toma uma proporção imensa, reverberando por toda a série e impactando até hoje nas HQs. E, para fechar com chave de ouro, a série guarda um final épico e inesquecível, mas deixa um espaço para a fase seguinte, feita por Ed Brubaker and Michael Lark.
Fase Mark Waid
Os tempos de tragédias, ressentimentos e sofrimento do herói são deixados de lado, abrigando espaço para dias mais claros e leves na vida de Matt Murdock. Mark Waid deixa evidente que sua abordagem do Demolidor será diferente do recente caminho que o personagem teve nos últimos anos. Para tal, o escritor revisita a simplicidade das histórias antigas dos super heróis Marvel, porém acrescentando aspectos modernos à trama, sempre usando uma saída diferenciada com sacadas brilhantes. Certas histórias, apesar de rápidas, conseguem transmitir e agregar uma quantidade impressionante de conteúdo, sem se tornarem cansativas. Já a arte de Paolo Rivera e Marcos Martin usa um contraste de cores fortes que ressalta personagens e lugares, além de terem criado uma forma interessante de exprimir os poderes do Demolidor.
Outro lado do personagem que se destaca nessa fase é a importância da formação acadêmica de Murdock. Por diversas vezes nas histórias, o leitor se depara com o lado advogado do herói, seja relembrando momentos em sua época da faculdade ou tomando cuidado em respeitar e manter as bases para que a justiça possa ser feita após sua ação como Demolidor. Assim como sua profissão, Waid também gosta de explorar as peculiaridades da cegueira do homem sem medo, seja com pequenas curiosidades espalhadas nas histórias ou seu comportamento em público.
Essa fase de Waid foi realmente ótima, para mudar os ares do herói, retirando (um pouco) Murdock do constante inferno no qual era jogado. Atualmente a dupla criativa continua na frente do título na cronologia americana, a maior diferença recente foi a realocação do personagem para São Francisco. No Brasil essa fase é publicada desde junho de 2013, em título próprio, contendo vários números da edição americana. Devido a isso, até hoje foram lançados somente cinco número, então deve ainda ser possível encontra-las em sites de compra online.